quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Esclarecimento

Olá,

Quando criei este espaço, a intenção era poder ajudar alguém a compreender como funciona a mente de uma pessoa a quem diagnosticam ser portador de HIV. Se possível, desmitificar o "monstro" e fazer com que tod@s pudessem entender que apesar disso, a vida continua e no fim de contas, continuamos a ser pessoas, a ter sentimentos e a ter que lutar como qualquer outro por levar a nossa vida avante.
O motivo que me tem mantido afastado deste Blog, não é outro que um mau momento pessoal, no qual não me sinto com forças para poder servir de ajuda a ninguém. Se escrevesse o que me vai na alma, provavelmente surtiria o efeito contrário, e tal como vos dizia, esse não é o meu objectivo. Por isso, prefiro esperar a clareza que nos dá o transcurso de algum tempo para poder avaliar as situações sem multiplicar as suas verdadeiras dimensões. Esta espera é fruto da coerência e cordura mental que adquiri junto com a situação de seropositivo. Tal como não gosto que ninguém me diga algo sem medir as suas palavras (embora tente não levar as coisas a peito), prefiro agora manter silencio durante um período indeterminado, que me vai conferir uma visão mais objectiva, mais madura e mais imparcial; com a qual vou poder redimensionar os meus problemas actuais para saber como lhes fazer frente.
Até lá, desejo que tod@s estejam bem e mando-vos um forte e apertado abraço.

Perfect Day - Lou Reed

sábado, 24 de outubro de 2009

De volta à Vida

Cá estamos de novo! Ufffff!!! Duas mudanças em menos de 6 meses sao dose!!!...
Bom, espero nao ter estado fora tempo suficiente para fazer algum leitor perder o interesse no Blog.
É bom estar de volta à cidade, de volta à vida, ao reboliço do metro e ao cheirinho outonal a Castanhas assadas pelas ruas, que tanto me faz lembrar a minha querida cidade invicta. Vem-me sempre à mente o fado do Carlos do Carmo " O Homem das Castanhas" e dou por mim a cantarolar: "Quem quer quentes e boas? Quentinhas! A estalarem cinzentas, na Brasa! Quem quer quentes e boas? Quentinhas! Quem compra leva mais amor p'ra casa!"
Espero que todos estejam a ter um principio de Outono bem quentinhos, bem abrigadinhos do frio e dos virus mauzoes de gripes e afins, e que possam apreciar uma vida repleta de amor, que está lá até mesmo quando nao o vemos ou por qualquer motivo o esquecemos...
Ando em fase bastante Zen, fruto de um livro que estou a ler por recomendaçao de um amigo. E fazendo Juz à Filosofia dessa literatura de cabeceira, só poderia despedir-me de uma maneira:
Muita PAZ

sábado, 19 de setembro de 2009

Elipse Temporal



Ao ler as entradas anteriores, dei pela falta de um capítulo que me sinto na responsabilidade de partilhar.
Seguramente se lembrem do "F", um companheiro de penúria que estava imerso numa situação de exclusão social e familiar, para além de outras problemáticas pessoais.
Pois bem, desde aquela noite em que lhe dei guarida em minha casa, não pude deixar de pensar no que aquele homem estaria a passar. Ficou sempre latente na minha cabeça, como uma marca de fogo, o sofrimento de quem se vê tão desamparado e ainda por cima lhe diagnosticam SIDA.
Nas reuniões seguintes do grupo de auto-ajuda, falei várias vezes com ele e interessei-me pelo progresso da sua situação. Foi-me dizendo que era demasiado difícil encontrar um trabalho digno sem ter sequer onde descansar de noite, nem onde poder fazer a higiene diária, para não falar de uma alimentação adequada.
À medida que o inverno começava a fazer-se sentir, as vezes que me perguntava a mim mesmo o que poderia fazer para o ajudar ao longo do dia, iam em aumento.
O colectivo onde nos reuníamos contava com aconselhamento, mas daí não passava. Aí tinham-no remetido a um gabinete de atenção estatal que contava com assistente social, que o informou de programas de ajuda para casos como o dele, e como se deveriam levar a cabo os trâmites necessários, mas nada mais.
Acabei por fim por entender o que o impedia de recorrer a essas ajudas. Um belo dia, estava eu confortavelmente em casa, e deu-me por indagar a título pessoal.
Comecei a fazer chamadas para várias entidades para averiguar que programas existiam e como poderia ele aceder a estes. Puz-me em contacto com várias ONG's e ao fim de umas horas tinha conseguido colocá-lo em lista de espera em duas casas de acolhimento para seropositivos, uma da Cruz Vermelha, e outra de uma associação de beneficiencia, mas que não davam garantias de o receberem em tempo útil. Não contente com isso, consegui chegar à fala com a assistente social que seguia o caso dele e fiquei a saber que uma das ajudas estava já concedida. Consistia em encontrar uma pensão que estivesse disposta a alojá-lo durante um período de três meses, e a receber o pagamento directamente através da Cáritas. O dinheiro que estes dispunham não era suficiente para pagar um período tão longo em nenhum estabelecimento deste tipo numa cidade como Madrid, mas o principal obstáculo não era esse.
Nessa mesma tarde, saí de casa à procura do "F". Quando o encontrei, disse-lhe directamente: -"Diz-me lá em que estado está a história da ajuda que te dão e como funciona tudo isso."
Fiquei a saber, que o que o impedia de concretizar essa ajuda era o simples facto de não se sentir em condições de ir bater à porta de várias pensões, e que lhe fechassem a porta na cara. Era um problema de dignidade humana. Afinal, com tudo o que lhe estava a acontecer, e ainda por cima mais esta...
Então disse-lhe: -" Vem daí e vamos fazer uma lista de pensões da zona. Depois disso vamos os dois lá falar com os responsáveis e se tivermos que levar com a porta na cara, não te preocupes, que será na minha cara que estas se fechem, e não na tua".
E assim foi. Depois de calcorrear o centro de Madrid durante umas quantas horas, e de ter levado com várias portas na cara, lá conseguimos encontrar uma, na qual já tinham alojado outras pessoas através da Cáritas, e que não punham nenhum problema em recebê-lo.
Tratei de negociar o preço com o dono para que a diferença entre o que pagava a Cáritas e o que cobrava a pensão fosse a menor possível. Mas era necessário que a Assistente Social fosse lá falar com os donos para formalizar o processo, e entretanto já não eram horas de que esta estivesse a trabalhar. Assim sendo, combinamos com o Sr. que ela iria lá no dia seguinte, e entretanto perguntei se tinha algum quarto livre para essa mesma noite. Ter, tinha, mas não era um quarto individual, já que este só ficaria livre no dia seguinte, e assim, puxei de carteira e agarrei as ultimas notas que tinha. Decidi que o "F" não ficaria na rua mais uma noite, e paguei do meu bolso o quarto para esse dia.
Semanas mais tarde, quando o voltei a ver na reunião do grupo, fiquei satisfeito com o resultado. Tinha outra cara. Era outro homem. Tinha recuperado o brilho no olhar e não tinha mais do que palavras de agradecimento para comigo. Começara por fim a recolher os seus bens pessoais que caritativamente tinham sido guardados por várias pessoas em lojas e oficinas da zona, e podia fazer uma vida mais normal.
Não sei se finalmente acabou por conseguir emprego nesses três meses, mas pelo menos sei que durante esse tempo não dormiu à intempérie nem à mercê do frio inverno de Madrid.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pastilhas, Comprimidos e outras viagens II

No dia seguinte acordei cedo. Era dia de trabalho e lá tinha eu que cumprir com as minhas obrigações... Sentia como se em vez da cabeça, tivesse uma enorme abóbora colocada em cima do pescoço, e como se tivesse estado toda a noite a beber um qualquer Whisky barato com a respectiva ressaca e a falta de equilibro subconsequente.

Não me lembro de ter tido um dia de trabalho mais comprido... Sentia-me realmente mal. Mas à medida que passavam as horas, ia-me sentindo um pouco melhor. Lembro-me distintamente de sentir as tonturas e os calores num incessante vai-vem ao longo de todo o dia, mas não dei parte fraca, e a "reganha dentes" lá aguentei estoicamente toda a jornada de trabalho.

Estes efeitos secundários acompanharam-me durante vários dias, creio até que semanas, sempre em decrescendo. Actualmente ainda me visitam de vez em quando, mas vou aprendendo artimanhas para evitar tão desagradáveis visitas. Por exemplo, sei que se tomar a medicação com o estômago cheio é mais provável que sinta estes efeitos, por isso, sempre que posso janto mais cedo e assim evito sentir-me mal após tomar a medicação.

Outra coisa são os sonhos... Esses não há como evitá-los. Desde sempre tive uma relação especial com o mundo dos sonhos. Lembro-me de sonhar de criança com coisas que, mais dia menos dia, acabavam por acontecer. Mais tarde, após conhecer a dor da perda de alguém próximo, lembro-me de em sonhos poder conversar com esses seres queridos. Normalmente ao acordar esquecia-me de partes ou por vezes da totalidade dos meus sonhos. Hoje isso não acontece. Mais do que sonhar, de tão vivos que os sinto, os meus sonhos são experiências. Umas vezes agradáveis, outras nem tanto, mas sempre experiências. Não se pode dizer que "de vida", mas experiências muitas vezes repletas de espiritualidade e sensações reais, de presenças e interacções com muita gente; conhecida ou não, que está viva ou não... É como se por fim me apercebesse que pertenço a uma rede de pessoas, ou será de almas, que podem trabalhar em conjunto por objectivos em comum... Para interferir ajudando espiritualmente muitos outros que necessitam essa ajuda. Em conversa com um grande amigo, seguidor da corrente Espírita, fiquei bastante elucidado a respeito destas experiências. Não peço que ninguém compreenda esta parte do meu relato, até porque se poderia perfeitamente dizer que alguém que toma um comprimido que logo de entrada se chama Atripla, está sujeito a divagar pelo "sem sentido", mas sinto que se aproxima a hora de aprofundar um pouco sobre estes assuntos e partilhar a minha visão pessoal sobre as questões da espiritualidade.

"Ao largo ainda arde a Barca da Fantasia, o meu sonho acaba tarde, deixa a Alma de vigia..."

Pastilhas, Comprimidos e outras viagens...

O facto é que acabei por me afastar um pouco do "F". Achei que já me bastava com os meus próprios problemas e decidi descansar dos problemas dos outros.
Por esta altura, coincidiu uma consulta de rotina, após a segunda análise de sangue para ver como andavam as minhas defesas.

Quando pela primeira vez me deram uns resultados com quantificações de todo tipo, procurei nos outros membros do grupo ajuda para os entender. Pelo que fiquei a saber, uma carga viral de 3184 cópias do vírus no sangue era um valor favorável, já que estas podem ir até 50 000; por outro lado, uma contagem de linfócitos CD4+ de só 317 é já bastante baixo, já que se recomenda medicação para valores abaixo dos 350, mas o médico lá me explicou que o que realmente importa é a tendência dos valores, mais do que estes num determinado momento. Isto fez-me ficar esperançado de que variariam de forma favorável, já que com certeza estes valores tão baixos se deveriam ao stress do diagnóstico, e que assim que a minha vida se normalizasse, eles também o fariam.

Nada mais longe da verdade... Lá levei eu mais uma decepçao!
Quando me deram os segundos resultados, lá vinha uma Carga Viral de 9 104, que continuava a ser baixa e portanto não augurava nada mau, mas lá estava também uma contagem de CD4+ de apenas 270. A realidade é que eu não me sentia nada doente, bem pelo contrário. Eu que sempre fôra um frasquinho de cheiro, que cada dois por três me punha doente, na realidade encontrava-me estupendamente. Mas bem... em tom mais ou menos solene e ao mesmo tempo mais ou menos tranquilizador, lá me disse o especialista que havia chegado a hora de iniciar a terapia anti-retroviral.
Mais uma vez, aqui tivemos peripécias para todos os gostos...
Havia pouco tempo, saíra para o mercado um medicamento constituído por três componentes, reunindo assim uma tripla terapia (ou Cocktail terapêutico como alguns preferem chamá-lo... a mim não me importaria nada que fosse apenas um Cocktail...) tudo isto num só comprimido. Excelentes notícias, já que apenas teria que tomar um comprimido por dia, ao deitar, reduzindo assim as possibilidades de me esquecer de alguma toma e portanto de reduzir a eficácia do tratamento ou de que o vírus desenvolvesse resistências à medicação. Até aqui tudo bem, mas confesso que fiquei algo "de pé atrás" quando me recomendou não ler a bula do medicamento, para não me predispor aos possíveis efeitos secundários!...
Obviamente que uma mente inquisitiva como a minha, não pôde resistir a semelhante tentação, e foi exactamente a primeira coisa que fiz quando cheguei a casa...
Li e reli com serenidade o prospecto. Na verdade, até havia motivos para ficar assustado, sobretudo se tivermos em linha de conta que consta da lista de possíveis efeitos secundários ao medicamento um fenómeno chamado Acidose Láctea que na maioria dos casos deriva em Morte... Ora, a morte como efeito secundário é um pouco forte, diria eu... mas como também estava disposto a cumprir com a medicação pelo maior tempo possível, decidi recusar-me a sofrer este efeito secundário... que me dessem outros, mas esse não até porque eu tinha que continuar a medicar-me a não podia fazê-lo morto!...
Assim, quando chegou a hora de nos deitarmos, o meu amor lá me tinha posto um copo de água na mesinha de cabeceira e o frasquinho de Atripla mesmo ao lado.
Como se fosse um cerimonial que começava e que se repetiria de maneira ritual ad eternum, levantei o copo e disse: "Cá vai disto!"
A chapola não era nada fácil de engolir... sobretudo tendo em conta que são 1045mg de pastilhao! Mas com boa vontade, passou.
O mais curioso de tudo foi que adormeci como um bebé, e lembro-me de pensar: "já está, isto não custou nada!"... Engano outra vez!
Passada uma hora mais ou menos, acordei como se estivesse nas fornalhas do Inferno!!! Sentia um calor horrível, e isto que estávamos em pleno mês de Dezembro, com temperaturas exteriores da ordem dos -3ºC.
Mas eu ardia! Sentia-me arder como se estivesse deitadinho numa pira e com umas tonturas tão fortes que era como se essa pira estivesse num barco à deriva no meio do mar tempestuoso.
Por momentos senti-me na "barca da fantasia", aquela que ainda arde ao largo, como dizia o Pedro Ayres de Magalhães, tão bem interpretado pelos Madredeus. E de tanto arder e sentir-me à deriva, acabei por espernear até acordar o meu amor. Levantou-se de um salto, e veio pôr-se ajoelhado do meu lado da cama. Dizia que ao toque, não me sentia quente, mas eu não aguentava mais... então, foi buscar um copo de água que eu bebi furiosamente. Trouxe uma bacia de água fria e uma toalha... pacientemente foi-me colocando a toalha molhada pela testa, pela nuca, pelo peito... Não sei quanto tempo esteve nisto, mas sei que só assim acabei por voltar a adormecer... sentindo-me cuidadosamente atendido por quem me ama... Jamais esquecerei este seu gesto. Mais uma grande prova de amor, daquelas que vêm exactamente quando mais delas precisamos...

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Auto-Ajuda II

A noite acabava sempre da mesma maneira. Depois de uma reunião em tons mais ou menos sóbrios, íamos um grupo de uns 8 ou 10 jantar ao restaurante do Sr. Manuel.

O Sr. Manuel, trasmontano de gema radicado em Madrid há mais de 20 anos, gerencía um restaurante antigo no centro do bairro da Chueca, junto com a sua esposa e filhas. Claro que ao entrar pela primeira vez, lá tive eu que dar com os olhinhos num galo de Barcelos que nos vigiava do cimo da prateleira mais alta, juntinho às garrafas de aguardente caseira e ao tecto. Foi quando comentei com algum dos comensais a presença do familiar bicho, que me disseram que os donos do restaurante também eram portugueses e por cortesia, lá entablei conversa com eles em Português.
Aqui era onde verdadeiramente caíam as mascaras e cada um falava livremente de si e das suas experiências. Sem as reservas do grupo, e num tom mais distendido e cúmplice (cumplicidade por vezes compartida com o vinho do jantar) aqui era onde se viam as verdadeiras cores de cada um. Entre eles, havia de tudo, desde o solitário desesperadamente cansado dessa condição, o amigo picaresco que acabava sempre por confessar a sua predilecção por determinados jogos sexuais, o experimentado guia de museu, sempre com peripécias que contar tanto sobre os torpes visitantes do museu, como dos entremeios do mundo da cultura com o que sempre nos surpreendia, e uma soma de outros personagens, cada um com um apelativo próprio e especial.

Quando nestas tertúlias alguém se queria referir ao nosso denominador comum, em lugar de chamar-lhe VIH, chamava-lhe "Frederico". Assim, todos éramos "amigos do Frederico" e quem estivesse a ouvir, não tinha porque entender do que falávamos. Este recurso pseudonímico era de autoria do guia de museu, sobrevivente desde há quase 25 anos do "Fred", e em tempos em que a simples alusão ao termo VIH ou SIDA paralisavam meia cidade de cada vez que se proferiam. Era como uma palavra de código que herdamos dos tempos da resistência...

Entre estes personagens, lá estava o "F"de quem vos falei anteriormente. O "F" chegou ao grupo no mesmo dia que eu. Tinha 41 anos e vinha de um internamento hospitalar no qual lhe tinham informado da sua seropositividade. Chegou de rastos...até eu que nesse dia estava necessitado de ser alvo de consolo, acabei por tratar de o consolar a ele, e é que sempre há alguém em pior situação que nós.
Para além do problemático estado de saúde do "F", havia outros factores agravantes. Encontrava-se desempregado e sem qualquer subsídio, e para cúmulo, os "amigos" com quem compartia apartamento, atiraram com ele para a rua quando ele deixou de poder pagar o aluguer do quarto. E andava esta criatura a dormir nas caixas multibanco ou de vez em quando numa sauna em que o porteiro era seu amigo e o deixava entrar sem pagar. Ora tudo isto em cima de um tipo só e tudo ao mesmo tempo... era de bradar aos céus!
Nos nossos jantares lá o levávamos connosco e entre todos repartíamos o preço do menu dele; sempre era uma ajuda. Mas todos éramos conscientes de que não era solução para nada... Eu, talvez por ser tão novato no assunto como ele, era alvo dos seus desabafos, e acabava por regressar a casa ainda mais carregado.
Fiquei a saber que era um ex-sub-oficial militar de carreira, expulso da Marinha quando um tenente também homossexual o descobriu num lugar de ambiente num dos portos por onde passavam. Dupla moral de alguns... que são duplamente injustos. Depois disso, chegado a Madrid, envolveu-se na vida politica activa, até se dar de caras com a hipocrisia dos políticos e passar de um bando de direitas para nada menos que o partido comunista que acabou por ser o único que não o excluiu nem julgou por ser quem era...
Enfim, um personagem desses que uma vez que te conta o seu percurso de vida, e as suas origens, só não choram as pedras da rua... filho de uma prostituta, nunca conheceu o pai, e viveu na miséria grande parte da sua vida. Uma infância a dormir sobressaltado pelo entrar e sair da mãe acompanhada pelos "amigos" e abusado sexualmente por um deles numa ausência da mãe, por vezes o difícil é entender como alguém pode manter a cordura e a sanidade mental depois de um percurso destes...
Por isso, um dia, talvez a minha terceira ou quarta visita ao grupo, enquanto acabou a reunião, perguntei-lhe se tinha onde jantar e dormir nessa noite. Respondeu-me que não, e decidi levá-lo comigo para casa. O meu jantar era modesto, mas podia oferecer-lhe uma cama por uma noite, uma refeição quente, um duche e alguma roupa limpa. Ele aceitou e lá viemos para minha casa.
Na manha seguinte lá o levei de volta para o centro e despreocupei-me. Na seguinte reunião acabei por comentar entre dentes a um dos companheiros com quem tinha algo mais de confiança o ocorrido e perguntou-me se tinha corrido bem a coisa... fiquei preocupado. Obviamente interroguei o porquê da pergunta, ao que me respondeu que o "F", apesar da miséria em que vivia e de tudo o que lhe estava a acontecer, não deixara antigas dependências substanciosas... repassei mentalmente tudo o que tinha em casa antes e depois da sua passagem por lá, e não dei por falta de nada... Lembro-me de pensar: seria demasiado, "morder a mão que te dá de comer" mas nestas situações nunca se sabe...


quarta-feira, 29 de julho de 2009

O Grupo de Auto-ajuda


Ao aproximarmos do primeiro aniversário do meu diagnóstico, sinto que devo avançar um pouco mais o relato com que iniciei o Blog.

Assim, aqui vai:

Efectivamente, a reunião do grupo de Auto-ajuda era numa segunda-feira á tarde. Lembro-me de ter saído do trabalho, umas horas antes, e como estava perto, ir para uma esplanada fazer horas. Telefonei para a associação para saber exactamente a que horas era a reunião, e disseram-me que era só às 19h30, mas que se era a primeira vez que ia, que fosse à volta das 18h00 para que me fizessem um "acolhimento".

Os minutos na esplanada custavam a passar... Apesar do meu Caramel Machiato e do fresquinho que emanava da esplanada contígua que tinha um sistema de aspersores de névoa que são uma delícia para os Verões quentes de Madrid... Nem o livro que trazia entre mãos me ajudou a manter-me paciente enquanto esperava a hora de ir... não estranha, a quem tranquiliza o "Vida e Mortes" do Faustino Cavaco??

Confesso que hesitei... Preferia entrar directamente numa sala com um grupo grande de gente desconhecida, sem levantar grande reboliço, e ir-me fundindo pouco a pouco com a paisagem... mas não, tinham que me "acolher", ou seja, fazerem-me uma entrevista pessoal com um técnico capacitado para o efeito, para avaliarem em que estado me encontrava e há quanto tempo me tinham dado a notícia, para me derivarem a serviços de Psicologia ou Assistência Social no caso de ser necessário.

Na realidade, a pessoa que me acolheu foi muito simpático. Quis saber até que ponto eu estava informado acerca de VIH e de como viver com ele, e com que apoios contava eu nesse momento.

Depois de conversarmos, levou-me pela mão a uma sala onde estava o grupo reunido: Eu morria de vergonha.

Quando se abre a porta, vejo muito pouca gente, seriam uns quatro ou cinco, que interrompiam o que estavam a dizer e levantavam os olhos para mim. Sempre detestei estas situações em que, queiras ou não, as pessoas acabam por te expor a enjuizamento público, mas não tinha outro remédio! Não li no olhar de nenhum deles nada que pudesse interpretar como ofensivo ou reprovador. Não, vi olhos abertos olhando de frente e sorrisos compreensivos e amáveis. Fiquei mais tranquilo.

Estavam a passar a palavra de um em um, contando quem eram e como lhes tinha corrido a semana. Havia de tudo, desde gente que convivia com o VIH há 20 anos, até outro que como eu chegou nesse dia por primeira vez (após internamento hospitalar, deste personagem em concreto vou-vos falar mais adiante);

Na realidade, era tranquilizador ver gente que, convivendo com o vírus há anos, e tendo passado pelo pior da epidemia, da descriminação, das medicações aos 25 comprimidos por dia, da desaparição de todo o seu ciclo de amigos, do estigma da doença, da descriminação laboral, da Lipodistrofia que deixa marcas bem visíveis sobre os que vivem com este problema... Ah, mas era para vê-los. Todos bem dispostos, falando de namoricos de alguns, de problemas de outros, era como um encontro entre irmãos. Verdadeiros irmãos de sangue. Claro que como todos os irmãos, por vezes surgem diferentes opiniões sobre determinado tema, mas como irmãos, o assunto acaba por ficar solucionado.

Senti-me como um deles... um irmão.

Chegou por fim a minha vez de falar. Disse o meu nome e que estava diagnosticado havia 3 dias. Comecei a frase com muita vontade, mas a voz embargou-se-me a meio e creio que entenderam o final por dedução. Segurei as lágrimas como pude enquanto algum dos outros tratava de me tranquilizar.

"Os primeiros dias são os piores, depois vais ver que até nem pensas nisto e que fazes uma vida normal... Olha para nós, não parecemos gente normal?" Diziam isto no meio de um certo sarcasmo, mas a verdade é que me ajudou a ter fôlego para lhes contar a minha história que ouviram com todo o interesse.

No final, relembraram-me as regras do grupo. Confidencialidade, respeito, não emitir juízos de valor nem criticar os outros, respeitar o turno de palavra dos outros, não dar conselhos...etc.

Antes de que terminasse a reunião, chegou um elemento novo, esse sim com mais problemas que eu, e que mexeu comigo... mas isso é outro capítulo.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Atlântico




Meu velho amigo, quanto tempo sem nos vermos... Fico feliz pelo recebimento.

Não deixaste de rugir as tuas ondas ao ver-me chegar.

Quanta saudade nas tuas brancas espumas...

quanto da essência um do outro encerramos...

E esse perfume tão característico que emanas a maresia...

Vejo que os teus gostos musicais não mudam, e alegro-me por isso. O coro de gaivotas e o chocalhar de búzios é a melhor banda sonora para um reencontro como o nosso...

Por vezes, nas minhas longas ausências, sinto o teu sabor nas lágrimas que verto ao ter-te longe, e ao mesmo tempo choro e sorrio.

Sorrio porque sei que sempre estarás aí à minha espera... e choro porque ter-te longe significa não só a distancia física que há entre nós, mas também de saudades pelo bem que me fazes... porque ter-te longe é sinónimo de estar longe de mim... de quem fui e de quem sou. O meu coração divide-se em mil pedacinhos cada vez que me afasto de ti.

Tenho pena de não ser intemporal como tu. A vida é breve para tantas ausências. Espero algum dia poder repousar bem perto das tuas lânguidas águas, num abraço tormentoso e alvoroçado, e por fim, reunir fisicamente as essências de nós os dois, que teimo em separar...

Até um dia, meu querido Atlântico...

domingo, 5 de julho de 2009

O regresso do filho pródigo

Volto em breve, depois de muitos meses de ausência ao seio familiar. É uma visita de necessidade, de reencontro, de amor e de saudade, mas ao mesmo tempo de incertezas e de mentiras.
É o primeiro regresso ao convívio familiar depois do inicio da terapia anti-retroviral. Desconhecem em absoluto a realidade, e deverão continuar no desconhecimento, mas agora, para além de me preparar para receber tudo o que me queiram dar, terei que estar preparado para que não se note a mentira que escondo. Este segredo que me vai carcomendo a consciência deverá manter-se no obscurantismo. Por um lado por mim, para não suscitar nem pena, nem preocupação, mas também por eles, porque imagino a frustração, o desespero, e a desilusão que representaria para eles o conhecimento do meu estado serológico.
Acostumado a viver vidas múltiplas, não me sinto com forças para manter uma encenação tão elaborada desta vez, porque me sinto ainda frágil, vulnerável, culpado, e até mesmo por vezes conspurcado e revoltado com o mundo... E se diante da sociedade é mais ou menos fácil manter uma barreira que isole o que sentimos daquilo que os outros percebem em nós, diante da família, é bem mais difícil, é virtualmente impossível, porque estão feitos da mesma matéria, porque vêm mais além dessa muralha, porque sentem o que sentimos mesmo sem que o digamos...
Tenho medo. Mas não de ser descoberto. De provocar sofrimento desnecessário. De incendiar uma angústia permanente, impossível de apagar, que teria sido bem mais fácil evitar... mas o que digo eu? "teria sido"... que inocente... Já deveria ter aprendido a não mencionar o que teria sido, mas sim e somente o que é e possivelmente será...
Espero poder manter a farsa... e desligar-me dela o suficiente para poder apreciar os momentos de convívio tão desejado e que tanta falta me têm feito.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Alívio de Luto


Amanhã completa-se um ano desde o falecimento de uma querida pessoa de família. Não sei como encarar a situação, aliás, creio que hoje-em-dia poucos sabem...
Será que o que nos dói é simplesmente um reflexo egoísta por nos vermos privados da companhia de quem gostamos? Ou será que efectivamente o nosso luto se deve à transição a um plano espiritual que nos é mais longínquo?
A realidade da nossa sociedade actual é que a morte foi encasilhada num dos mais férreos tabus. Antigamente, os velórios em casa com as famílias de luto rigoroso, o vai-vem de vizinhas e xícaras de café ( ou até mesmo de alguma carpideira profissional) era um conjunto de rituais que de certa forma traziam a morte para a nossa vida. Uma pessoa vestida de luto, era interpretada como alguém em processo de sofrimento, que obedecia a determinados padrões de comportamento, e ao mesmo tempo evitava também que alguém "metesse a pata" ao perguntar sobre algum assunto mais delicado.
Até as crianças eram as últimas a dar um beijinho no avôzinho antes de se fechar a tampa do caixão.
Hoje em dia, tudo está mais "pasteurizado". O chorar em público está mal visto (obrigandonos a embutir sentimentos que só nos vão complicar o processo de superação), os velórios têm hora marcada de acordo com os horários das capelas mortuárias (o que para algumas pessoas supõe um trauma acrescido já que o que desejariam seria não separar-se do seu ser querido até à hora de o depositar na sua urna), e o tema das criancinhas... bem esse é melhor nem tocá-lo, porque para as crianças de hoje, a morte será certamente algo de extremamente desconcertante, uma vez que estão afastadas definitivamente de todo o processo pelos adultos que não entendem que se as crianças não tomam parte na morte de um ser querido, não entenderão que a sua própria vida é finita e que a vida deve ser interpretada como algo que terá um fim, logo haverá que não perder tempo com "birras" e maus humores que não levem a nada.
Entendo que numa sociedade como a actual, na que é preciso manter-se jovem a toda a custa para continuar a viver o consumismo, não convenha nada que as pessoas se dêem conta de que a vida tem fim... mas esta situação origina comportamentos pouco saudáveis que muitas vezes acabam nas consultas de psicologia ou até mesmo com recurso a psicofármacos (alguns deles com resultados questionáveis e com efeitos adversos mais que óbvios);
Por isso, há um ano atrás, vesti o meu fato negro com a minha gravata negra (aquela dos tempos de estudante que sempre tem mais significado para mim) e tentei viver o luto sem me poupar a nada.
Um ano depois, a sensação de perda ainda não está superada de todo, mas sinto que o processo de superação está a decorrer sem sobressaltos.
Além disso, apenas um mês e meio depois da morte desta pessoa de que vos falo, fui diagnosticado como seropositivo, o que me levou a pensar na morte ainda mais na primeira pessoa. Apenas 3 meses depois disso, comecei a tomar a medicação, e um dos efeitos secundários que tem é precisamente sonhar de forma extremamente vívida e real. Aproveito o "bilhete grátis" para essas viagens e visito quem já cá não está.
Devo dizer-vos que nesse plano semi-consciente, temos conversas do mais interessante e muitas vezes servem para me tranquilizar no que respeita à minha própria morte e à minha situação pessoal.
não sei o que será do meu corpo quando o dia chegar, mas como não posso fazer mais do que um testamento vital expressando a minha vontade, uma vez que aconteça, deixarei que outra pessoa se (pre)ocupe desses detalhes...

terça-feira, 23 de junho de 2009

...e eu tao longe...


Por estes dias, sei, imagino e sinto a alegria que paira pelas ruas do meu querido Porto. São dias de festa. De manjericos e de sardinha assada. Não faço a mais pequena ideia do impacto que a crise financeira possa ter tido na vontade de comemorar do meu povo.
Se nunca foi uma festa burguesa, o S. João, bem apelidado de Santo Popular, é festa para todos, embora bem me lembre eu que desde a minha infância até ao ultimo S. João vivido em directo, este sofreu uma transformação abismal em mais uma festarola consumista na qual já não importava tanto o saltar das fogueiras e o compartir a sardinhada com os vizinhos, mas sim, quem tinha o maior manjerico e quem tinha o martelinho da moda. Haverá males que vêm por bem? Poderá a falta de recursos empurrar o povo para esse espírito de partilha e de verdadeira festa popular de outrora?
Bem... resta-me dizer que eu... longe de todos esses aromas tão familiares nestas datas, ando por terras onde cheira a azeitonas e a terra quente. Não poderei festejar como bom portuense. Mas além disso sinto já que não devo. É o que tem viver fora da terrinha, no fim de contas, não celebramos as nossas festas, nem sentimos as dos que nos recebem...

terça-feira, 31 de março de 2009

A igreja Católica contra o Preservativo

Interrompo aqui o meu relato para tecer a minha humilde opinião acerca das recentes e polémicas afirmações acerca do uso do preservativo, vertidas por vários Prelados do Clero Lusitano, em defesa de Sua Santidade após a sua recente "metedura de pata".

Parece ser que apenas algum "rebelde" nas fileiras da igreja se atreve a tomar uma posição coerente com a manutenção da vida humana. Mas há algo que me perturba..."Têm uma obrigação moral de se prevenir e de não provocar a doença na outra pessoa(...)Há a obrigação moral de usar o preservativo"... será que o Sr. Bispo de Viseu me criticaria muito se eu argumentasse que ninguém é infectado de HIV por outra pessoa, mas sim que se infecta de HIV por manter relações sem protecção com outra pessoa (pondo que esta é a via de contágio mais frequente).No meu caso pessoal, considero que me infectei com HIV, e não culpo ninguém por isso. Se acaso a mim próprio. Mas o que está claro é que a obrigação (moral, ética, comportamental, cognitiva... deixo à escolha do freguês)de colocar meios de protecção numa relação sexual, é de igual responsabilidade para todos os participantes, e não somente para os que estão diagnosticados com HIV. Até porque se sabe que estes normalmente são os primeiros a sentir o peso do estigma e os problemas de consciência no caso de não usarem o preservativo.Além disso, bem mais perigoso é uma relação sem protecção onde nenhum dos intervenientes tem um diagnóstico efectuado, nem as provas pertinentes. Uma ENORME quantidade de gente está infectada e não o sabe, e a maioria dos contágios que se registam hoje em dia, são justamente provocados por esta situação.Quanto às "Igrejisses" em questão, parece que apenas o Sr. Bispo das forças armadas tem uma noção da realidade. Todos sabemos que a posição do Sr. Bispo do Porto é utópica. Mas a meu ver compreensível.Passo a Explicar:Diz o Sr. Bispo do Porto que o problema é comportamental. eu entendo o seu ponto de vista, embora não o comparta.Vista a actual crise de vocações na igreja católica, o que este senhor pretende é que todos sejamos celibatários, e por consequência todos dignos do sacerdócio, e assim acabar com a SIDA. Seria um método eficaz, se fossemos todos Santos. Mas como somos apenas Humanos, não creio que seja viável. Nem mesmo entre os que se supõe que são celibatários por vocação religiosa, já que é conhecido que na sua condição de Humanos e pecadores, até estes "fornicam" e seguramente que nem sempre com preservativo. Que escândalo, não é? Eu conheço pessoalmente casos.Bem melhor será usar o preservativo e penar no Purgatório para todo o sempre, que ser diagnosticado com HIV e ter de viver com o peso desta condição para o resto da vida. (Vão por mim... eu SEI)E aquilo que eu recomendo a toda a gente, isso sim. quer tenham tido relações sem protecção ou não, é que realizem com frequência o teste do HIV. É a única maneira de conseguir um diagnóstico precoce (HIV+) e evitar uma situação bem mais grave que é ter SIDA.
Abraços
Zé Ninguém

sábado, 28 de fevereiro de 2009

O início... (Parte II)



Foi mais ou menos por essa altura que me senti necessidade de falar com alguém sobre o assunto. Saquei de telemóvel e tentei pôr-me em contacto com o meu "irmãozinho" (amigo fiel que apesar de estarmos longe continuamos a ser tão próximos como sempre).
Mas não houve sorte. Não pude localizá-lo.
Só duas horas mais tarde, depois de ter empurrado algo de comida pela goela abaixo sem nenhuma vontade, com cara de Quarta-feira de Cinzas, e de ter saído para a rua, com destino ao trabalho, voltei a tentar contactá-lo e desta vez sim, pude por fim falar.
Bem... falar não foi exactamente fácil. Ao ouvir essa voz familiar só pude sentar-me de novo num banco e soluçar... Do outro lado ouvi-o mudar de tom de voz várias vezes. De surpresa pela chamada a horas pouco habituais, passando por preocupação, e chegando mesmo a um pouco de desespero com alguma lágrima à mistura por não saber o que se passava e só me ouvir chorar...
Por fim, reuni algo de fôlego e disse:
-"Tenho HIV"
Nesse momento, notei-lhe uma nova mudança no tom de voz.
Procurou acalmar-me e convenceu-me a desistir da ideia de ir trabalhar nessa tarde. Disse-me para dar uma desculpa, mas que de nenhuma maneira fosse trabalhar. E que procurasse não estar sozinho. Lembrou-me que tenho mais amigos, algum mais próximo geograficamente e que procurasse alguém de confiança.
Assim fiz.
Vagueei uma hora por entre a gente num centro comercial. Tudo me provocava uma avalanche de sensações. Sentia uma revolta imensa pelo facto de o mundo continuar como se nada se passasse... Como se atreviam os demais a continuar a divertir-se? Como se atreviam a sorrir? Sentia que os olhares das pessoas me despiam de toda a dignidade e me reprovavam a própria existência. Era como se todos soubessem o que me estava a acontecer...
Tive de fugir. Refugiei-me no exterior, atrás dos meus óculos de sol, e na ponta traseira de um cigarro que fumava furiosamente atrás do anterior.
Por fim, reuni coragem e liguei a uma amiga.
Deviam ser umas 14h30 mais ou menos... e enquanto me atendeu, deve ter percebido que algo se passava. Só lhe disse que precisava que nos víssemos, e disse-me que nesse preciso momento, deixava tudo o que estava a fazer e vinha ao meu encontro. Sem perguntar mais nada... Mais tarde confessou-me que quando atendeu o telefone sentiu um arrepio muito estranho e que por isso não fez perguntas. Sentiu que de verdade era necessário que viesse ter comigo.
Passados uns 15 minutos, já tinha chegado.
Não vinha sozinha, trazia o namorado pelo braço.
Cumprimentámonos e ao fim de poucos minutos já a catarata de lágrimas brotava de novo pelo meu rosto.
Sem saber o porquê das minhas lágrimas, ambos me abraçaram com força e me fizeram sentir acompanhado.
Foi então que lhes disse.
Caminhámos durante umas horas por uns jardins próximos, muito calmos, serenos, sumamente bonitos, e ao longo da caminhada íamos desfiando, uma por uma, as ideias e as emoções que eu ia sentindo. Eles, rebatiam e faziam-me ver que não era o fim, que tinha que reunir forças para continuar com a minha vida e que podia fazer uma vida inteiramente normal.
(Que bom é ter amigas Psicólogas nestas alturas... Sabes perfeitamente em que momento deixam de falar como amigas e o Chip de profissional entra em acção)
Acabei exausto.
Levaram-me para casa deles e sem dar por isso adormeci no sofá. A Montanha-Russa de emoções acabou por me derrotar.
Quando acordei, demonstraram-me uma vez mais que a amizade desinteressada existe.
Tinham estado os dois, no mais extremo cochicho, à procura na Internet de algum grupo de auto-ajuda sobre o HIV ao qual eu pudesse acudir.
As possibilidades eram variadas (sorte de quem vive numa cidade como Madrid), e depois de ter visto e analisado com eles cada uma delas, decidi-me. A próxima reunião era daí a 3 dias...

...Continua...

De regresso

Amigos, peço desculpa pela tardança, mas entre casório e acidente de viação à mistura, não pude aceder antes e continuar o meu relato. Por esse facto, as minhas mais sinceras desculpas.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Início

Lembro-me perfeitamente. Jamais poderei esquecer aquele dia. Ficou-me gravado na memória com letras de fogo aquela data: "14 de Agosto de 2008".
Era mais um dia de verão, de mais um verão em que não podia desfrutar de férias, nem de um muito merecido descanso. A situação laboral não mo permitia.
Tinha feito análises uns dias antes porque me tinha aparecido um gânglio inflamado e estava morto de medo de que pudesse ser algum tipo de carcinoma. Nessa manha fui ao consultório da minha médica de família para saber os resultados das ditas análises, o que se revelou uma perfeita perda de tempo já que me fez ir lá, mas ainda não os tinha.
Fui tratar de uns assuntos pendentes de trabalho. Passei a manha nisso, e tive uma excelente notícia. Por fim, depois de muitos meses de luta tinha conseguido algo que muito ansiava. Um objectivo cumprido! Estava feliz!
Voltei para casa e enquanto se ultimavam os preparativos para o almoço, dediquei uns minutos a ler os meus mails. Estava nesta entretida tarefa, quando de repente tocou o telefone.
A partir desse momento senti como se o tempo tivesse parado.
-"Estou? É o Sr. Zé Ninguém?"
-"Sim, sou. Faça o favor de dizer."
-"Fala a sua médica. Era para ver se podia vir ao consultório. Preciso falar consigo."
-"Vou já para aí. Não demoro nada"
Saí à pressa de casa, sem saber o que me esperava. Não me saía da cabeça a ideia do carcinoma.
Quando cheguei ao consultório, ela estava à minha espera, e tudo estava já deserto. Ninguém... como se não houvesse mais ninguém no mundo... Tudo me parecia sumamente estranho.
-"Entre"
-"Com sua licença. Queria falar comigo?"
-"Sente-se."
O tom era solene e o semblante quase mórbido. Houve um momento de silencio sepulcral que me provocou um arrepio gelado.
-"Já tenho os resultados das suas análises. Foram detectados anticorpos anti-HIV no seu sangue."
Não podia acreditar no que estava a ouvir. A minha cabeça começou a andar a uma velocidade alucinante, e o meu coração acompanhou o ritmo frenético.
Pela primeira vez na minha vida, fiquei sem reacção. Não podia ser... mas... isto não me podia estar a acontecer... a mim? Não pode ser!... Estas coisas só acontecem aos outros... a pessoas inconscientes que têm comportamentos de risco... e eu não os tenho! Sempre fui muito cauteloso com estes assuntos.
-"Tem a certeza? Não pode haver engano?"- era mais fácil a negação do que assumir tal facto. Que saída tão pouco nobre.
-"Estes testes são extremamente fiáveis. Não pense que é o fim... certamente lhe esperam uns dez anos de vida saudável pela frente"- Que saída mais infeliz. Só bastante mais tarde pude dissipar os fantasmas que esta afirmação me originaram na mente.
-"Dez anos? Mas eu só tenho trinta. Dentro de dez anos terei quarenta..."
O silencio que me dedicou deixou-me ainda mais desesperado.
-"Quer dizer que começa a corrida... começa a minha fuga da infecção ou da doença que um dia vai acabar comigo?"
-"Bem... não é bem assim... Hoje-em-dia as coisas já não são tão dramáticas. Existem muitas medicações que podem fazer com que viva uma vida perfeitamente normal..."
Nesse momento essas palavras eram perfeitamente impossíveis de assimilar. Normal??? Como podia algo voltar a ser normal desse momento em adiante?
-"Vou mandá-lo a uma consulta da especialidade no Hospital para que lhe façam mais testes, para ver em que estado se encontra. Tenho pena de não lhe poder ser de mais ajuda, mas hoje é o meu último dia de trabalho antes de ir de férias. Se quiser, quando regressar podemos ver-nos e conversamos um pouco mais sobre o assunto."
Não podia acreditar neste personagem... Lança-me uma bomba destas e pira-se de férias... Traidora!
Queria levantar-me e sair dali, mas fraquejavam-me as pernas. Estava bloqueado. Era como se tivesse um fardo de várias toneladas em cima...
Respirei fundo, e consegui por-me de pé. Ela repetiu:
-"Sinto muito não poder fazer mais nada..." - mas essas palavras não me serviam de consolo. Nesse momento, e num acto de desesperação, tentei apelar a algum fio de humanidade existente na pessoa que tinha à minha frente e disse-lhe:
-"Há uma coisa que pode fazer por mim."- Apanhei-a desprevenida... Estendi os braços na sua direcção e abracei-a... mas era como abraçar um bloco de gelo. Que pouco tacto tem esta gente. Que falta de humanidade. Que falta de compaixão, de sensibilidade humana e humanitária. E é isto uma profissional da saúde.
Como não me serviu de consolo, despedi-me educadamente e saí.
Os meus passos eram guiados por uma vontade que não era a minha... quando me encontrei fora do edifício, não me senti em condições de conduzir o carro, e decidi sentar-me um momento num banco de jardim a fumar um cigarro.
A minha mente dava voltas e voltas e era como se o meu mundo estivesse prestes a acabar. Lembro-me nesse momento de ter sentido raiva até do cantar dos pássaros que por ali esvoaçavam... Como se atrevem? E as crianças num parque das redondezas continuavam a brincar, felizes e a entoar gargalhadas que me faziam sentir uma revolta infinita.
Quando acabei o cigarro fui, mecânicamente sentar-me ao volante do carro em direcção a casa. Não sei em que pensava. Era como se fosse um autómato.

...Continua...

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A VIHda de um Zé Ninguém

A criação deste Blog surge após um período de reflexão. Desses períodos de reflexão que normalmente são precedidos de um acontecimento traumático que mudam o rumo de uma vida.
O meu caso não é diferente, mas antes de entrar nessa temática devo falar-vos um pouco sobre a minha pessoa:
Vivo há cerca de 4 anos em Espanha. Poder-se-ia dizer que sou um "Cérebro em Fuga", termo tão familiar nos meios de comunicação social em Portugal, porque vim com o meu canudo debaixo do braço quando me decidi deixar as minhas raízes e empreender esta jornada, esta nova etapa da minha vida. Poder-se-ia, mas não seria a verdade. Na realidade a minha fuga foi por AMOR.
Sim, por amor deixei tudo e mudei de país para compartir os meus dias com a pessoa que amo.
Aqui não me preocupo pelas aparências, pelos diz-que-disse tão característicos da sociedade semi-provinciana em que estava inserido, apesar de viver na segunda cidade portuguesa, o Porto. Cidade essa que por um lado me estrangulava e não me deixava ser quem eu queria, mas que por outro, e vista à distancia me acentua o lado nostálgico e melómano, e tantas saudades me deixa...
Não me arrependo de ter vindo. Prova disso é que me caso dentro de 3 dias. Coisa só possível pelo facto de viver neste país e não no meu.
Por outro lado, nunca tive medo ao trabalho e devo dizer que sou um dos últimos "Homem dos sete instrumentos" (espécie cada dia mais em vias de extinção) porque já trabalhei em coisas muito diversificadas e nunca me caíram os anéis. Claro está que na minha área específica de trabalho, estou melhor em Espanha do que poderia estar em Portugal, apesar de que a crise mundial que se vive por estes dias me esteja a afectar o bolso e as noites de sono...

Chegados a este ponto, estou certo de que algum leitor mais impaciente estará a pensar:
"Mas quando é que o tipo se decide a dizer afinal que coisa tão traumática lhe aconteceu???"
Conheço a impaciência... temos uma relação de íntima cumplicidade... afinal, convivemos há quase 31 anos.
Bem, o motivo que me levou a criar este blog não é outro que não o de compartir com quem tiver a amabilidade (e a paciência) de ler, os meus desabafos... os desabafos de uma pessoa que convive há meio ano com o VIH.
Que três letras tão tremendas, não são?
Tenho uma mente inquieta, quem me conhece sabe disso... e não penso usar este espaço somente como um pano de lágrimas e choramingar as minhas desgraças.
Apesar de me encontrar num isolamento quase completo acerca da actualidade portuguesa, tentarei criar um espaço aberto a temas que ocupem dita actualidade assim como temas menos efémeros, relacionados com a condição humana e com a vida quotidiana sob os mais diversos pontos de vista. Haverá tempo para tudo, mas sinto-me na obrigação de levar a cabo uma outra missão bem mais nobre do que essa.
Haverá leitores que seguramente conheçam alguém portador do mesmo vírus, e que certamente não sabe como lidar com a situação ou simplesmente não tem coragem para tocar no assunto.
Aí entro eu.
Espero poder aclarar qualquer dúvida sobre o tema, e ao mesmo tempo aprender algo da interaçao com os leitores.
Se puder ajudar a que a vida de outra pessoa que se encontre na mesma situação que eu seja um pouquinho menos desagradável, certamente terei o prazer a satisfação de cumprir com um dever auto-imposto.
Espero encorajar com estas linhas a participação de quem por aqui passar.
Um abraço e até breve,
Zé Ninguém