terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Início

Lembro-me perfeitamente. Jamais poderei esquecer aquele dia. Ficou-me gravado na memória com letras de fogo aquela data: "14 de Agosto de 2008".
Era mais um dia de verão, de mais um verão em que não podia desfrutar de férias, nem de um muito merecido descanso. A situação laboral não mo permitia.
Tinha feito análises uns dias antes porque me tinha aparecido um gânglio inflamado e estava morto de medo de que pudesse ser algum tipo de carcinoma. Nessa manha fui ao consultório da minha médica de família para saber os resultados das ditas análises, o que se revelou uma perfeita perda de tempo já que me fez ir lá, mas ainda não os tinha.
Fui tratar de uns assuntos pendentes de trabalho. Passei a manha nisso, e tive uma excelente notícia. Por fim, depois de muitos meses de luta tinha conseguido algo que muito ansiava. Um objectivo cumprido! Estava feliz!
Voltei para casa e enquanto se ultimavam os preparativos para o almoço, dediquei uns minutos a ler os meus mails. Estava nesta entretida tarefa, quando de repente tocou o telefone.
A partir desse momento senti como se o tempo tivesse parado.
-"Estou? É o Sr. Zé Ninguém?"
-"Sim, sou. Faça o favor de dizer."
-"Fala a sua médica. Era para ver se podia vir ao consultório. Preciso falar consigo."
-"Vou já para aí. Não demoro nada"
Saí à pressa de casa, sem saber o que me esperava. Não me saía da cabeça a ideia do carcinoma.
Quando cheguei ao consultório, ela estava à minha espera, e tudo estava já deserto. Ninguém... como se não houvesse mais ninguém no mundo... Tudo me parecia sumamente estranho.
-"Entre"
-"Com sua licença. Queria falar comigo?"
-"Sente-se."
O tom era solene e o semblante quase mórbido. Houve um momento de silencio sepulcral que me provocou um arrepio gelado.
-"Já tenho os resultados das suas análises. Foram detectados anticorpos anti-HIV no seu sangue."
Não podia acreditar no que estava a ouvir. A minha cabeça começou a andar a uma velocidade alucinante, e o meu coração acompanhou o ritmo frenético.
Pela primeira vez na minha vida, fiquei sem reacção. Não podia ser... mas... isto não me podia estar a acontecer... a mim? Não pode ser!... Estas coisas só acontecem aos outros... a pessoas inconscientes que têm comportamentos de risco... e eu não os tenho! Sempre fui muito cauteloso com estes assuntos.
-"Tem a certeza? Não pode haver engano?"- era mais fácil a negação do que assumir tal facto. Que saída tão pouco nobre.
-"Estes testes são extremamente fiáveis. Não pense que é o fim... certamente lhe esperam uns dez anos de vida saudável pela frente"- Que saída mais infeliz. Só bastante mais tarde pude dissipar os fantasmas que esta afirmação me originaram na mente.
-"Dez anos? Mas eu só tenho trinta. Dentro de dez anos terei quarenta..."
O silencio que me dedicou deixou-me ainda mais desesperado.
-"Quer dizer que começa a corrida... começa a minha fuga da infecção ou da doença que um dia vai acabar comigo?"
-"Bem... não é bem assim... Hoje-em-dia as coisas já não são tão dramáticas. Existem muitas medicações que podem fazer com que viva uma vida perfeitamente normal..."
Nesse momento essas palavras eram perfeitamente impossíveis de assimilar. Normal??? Como podia algo voltar a ser normal desse momento em adiante?
-"Vou mandá-lo a uma consulta da especialidade no Hospital para que lhe façam mais testes, para ver em que estado se encontra. Tenho pena de não lhe poder ser de mais ajuda, mas hoje é o meu último dia de trabalho antes de ir de férias. Se quiser, quando regressar podemos ver-nos e conversamos um pouco mais sobre o assunto."
Não podia acreditar neste personagem... Lança-me uma bomba destas e pira-se de férias... Traidora!
Queria levantar-me e sair dali, mas fraquejavam-me as pernas. Estava bloqueado. Era como se tivesse um fardo de várias toneladas em cima...
Respirei fundo, e consegui por-me de pé. Ela repetiu:
-"Sinto muito não poder fazer mais nada..." - mas essas palavras não me serviam de consolo. Nesse momento, e num acto de desesperação, tentei apelar a algum fio de humanidade existente na pessoa que tinha à minha frente e disse-lhe:
-"Há uma coisa que pode fazer por mim."- Apanhei-a desprevenida... Estendi os braços na sua direcção e abracei-a... mas era como abraçar um bloco de gelo. Que pouco tacto tem esta gente. Que falta de humanidade. Que falta de compaixão, de sensibilidade humana e humanitária. E é isto uma profissional da saúde.
Como não me serviu de consolo, despedi-me educadamente e saí.
Os meus passos eram guiados por uma vontade que não era a minha... quando me encontrei fora do edifício, não me senti em condições de conduzir o carro, e decidi sentar-me um momento num banco de jardim a fumar um cigarro.
A minha mente dava voltas e voltas e era como se o meu mundo estivesse prestes a acabar. Lembro-me nesse momento de ter sentido raiva até do cantar dos pássaros que por ali esvoaçavam... Como se atrevem? E as crianças num parque das redondezas continuavam a brincar, felizes e a entoar gargalhadas que me faziam sentir uma revolta infinita.
Quando acabei o cigarro fui, mecânicamente sentar-me ao volante do carro em direcção a casa. Não sei em que pensava. Era como se fosse um autómato.

...Continua...

Sem comentários: