terça-feira, 1 de setembro de 2009

Auto-Ajuda II

A noite acabava sempre da mesma maneira. Depois de uma reunião em tons mais ou menos sóbrios, íamos um grupo de uns 8 ou 10 jantar ao restaurante do Sr. Manuel.

O Sr. Manuel, trasmontano de gema radicado em Madrid há mais de 20 anos, gerencía um restaurante antigo no centro do bairro da Chueca, junto com a sua esposa e filhas. Claro que ao entrar pela primeira vez, lá tive eu que dar com os olhinhos num galo de Barcelos que nos vigiava do cimo da prateleira mais alta, juntinho às garrafas de aguardente caseira e ao tecto. Foi quando comentei com algum dos comensais a presença do familiar bicho, que me disseram que os donos do restaurante também eram portugueses e por cortesia, lá entablei conversa com eles em Português.
Aqui era onde verdadeiramente caíam as mascaras e cada um falava livremente de si e das suas experiências. Sem as reservas do grupo, e num tom mais distendido e cúmplice (cumplicidade por vezes compartida com o vinho do jantar) aqui era onde se viam as verdadeiras cores de cada um. Entre eles, havia de tudo, desde o solitário desesperadamente cansado dessa condição, o amigo picaresco que acabava sempre por confessar a sua predilecção por determinados jogos sexuais, o experimentado guia de museu, sempre com peripécias que contar tanto sobre os torpes visitantes do museu, como dos entremeios do mundo da cultura com o que sempre nos surpreendia, e uma soma de outros personagens, cada um com um apelativo próprio e especial.

Quando nestas tertúlias alguém se queria referir ao nosso denominador comum, em lugar de chamar-lhe VIH, chamava-lhe "Frederico". Assim, todos éramos "amigos do Frederico" e quem estivesse a ouvir, não tinha porque entender do que falávamos. Este recurso pseudonímico era de autoria do guia de museu, sobrevivente desde há quase 25 anos do "Fred", e em tempos em que a simples alusão ao termo VIH ou SIDA paralisavam meia cidade de cada vez que se proferiam. Era como uma palavra de código que herdamos dos tempos da resistência...

Entre estes personagens, lá estava o "F"de quem vos falei anteriormente. O "F" chegou ao grupo no mesmo dia que eu. Tinha 41 anos e vinha de um internamento hospitalar no qual lhe tinham informado da sua seropositividade. Chegou de rastos...até eu que nesse dia estava necessitado de ser alvo de consolo, acabei por tratar de o consolar a ele, e é que sempre há alguém em pior situação que nós.
Para além do problemático estado de saúde do "F", havia outros factores agravantes. Encontrava-se desempregado e sem qualquer subsídio, e para cúmulo, os "amigos" com quem compartia apartamento, atiraram com ele para a rua quando ele deixou de poder pagar o aluguer do quarto. E andava esta criatura a dormir nas caixas multibanco ou de vez em quando numa sauna em que o porteiro era seu amigo e o deixava entrar sem pagar. Ora tudo isto em cima de um tipo só e tudo ao mesmo tempo... era de bradar aos céus!
Nos nossos jantares lá o levávamos connosco e entre todos repartíamos o preço do menu dele; sempre era uma ajuda. Mas todos éramos conscientes de que não era solução para nada... Eu, talvez por ser tão novato no assunto como ele, era alvo dos seus desabafos, e acabava por regressar a casa ainda mais carregado.
Fiquei a saber que era um ex-sub-oficial militar de carreira, expulso da Marinha quando um tenente também homossexual o descobriu num lugar de ambiente num dos portos por onde passavam. Dupla moral de alguns... que são duplamente injustos. Depois disso, chegado a Madrid, envolveu-se na vida politica activa, até se dar de caras com a hipocrisia dos políticos e passar de um bando de direitas para nada menos que o partido comunista que acabou por ser o único que não o excluiu nem julgou por ser quem era...
Enfim, um personagem desses que uma vez que te conta o seu percurso de vida, e as suas origens, só não choram as pedras da rua... filho de uma prostituta, nunca conheceu o pai, e viveu na miséria grande parte da sua vida. Uma infância a dormir sobressaltado pelo entrar e sair da mãe acompanhada pelos "amigos" e abusado sexualmente por um deles numa ausência da mãe, por vezes o difícil é entender como alguém pode manter a cordura e a sanidade mental depois de um percurso destes...
Por isso, um dia, talvez a minha terceira ou quarta visita ao grupo, enquanto acabou a reunião, perguntei-lhe se tinha onde jantar e dormir nessa noite. Respondeu-me que não, e decidi levá-lo comigo para casa. O meu jantar era modesto, mas podia oferecer-lhe uma cama por uma noite, uma refeição quente, um duche e alguma roupa limpa. Ele aceitou e lá viemos para minha casa.
Na manha seguinte lá o levei de volta para o centro e despreocupei-me. Na seguinte reunião acabei por comentar entre dentes a um dos companheiros com quem tinha algo mais de confiança o ocorrido e perguntou-me se tinha corrido bem a coisa... fiquei preocupado. Obviamente interroguei o porquê da pergunta, ao que me respondeu que o "F", apesar da miséria em que vivia e de tudo o que lhe estava a acontecer, não deixara antigas dependências substanciosas... repassei mentalmente tudo o que tinha em casa antes e depois da sua passagem por lá, e não dei por falta de nada... Lembro-me de pensar: seria demasiado, "morder a mão que te dá de comer" mas nestas situações nunca se sabe...


6 comentários:

sideny disse...

Olá

Pois as vezes acontece essas coisas.

Nessas reunioês encontra-se de tudo.

abraço

sideny disse...

Olá

Esta tudo bem?

abraço

dermatologistested disse...

li alguns posts, voltarei para ler com mais atenção os que percorri e os que ainda não li... a vida as vezes é tramada , para não utilizar um termo mais forte, será um lugar comum, mas... força!
deixo um beijo de respeito e solidariedade.

Zé Ninguém disse...

Sidney, tudo bem. Cá vamos seguindo "sin pausa pero sin prisa"... a vida continua e estou em fase de nao me angustiar com o que nao está na minha mao alterar...
Obrigado pelas assiduas visitas. Espero nao estar a aborrecer com o relato.
1 abraço

Zé Ninguém disse...

Cara Dermato,
Seja muito bem-vinda. Entre sempre que quiser. Sinta-se em sua casa... Este é apenas um pequeno exercicio literario e auto-terapêutico, que espero algum dia, e a pedido de varias famílias, me seja possível converter num livro, narrando em primeira pessoa e no nosso riquíssimo idioma, a experiencia que me tocou viver. Sempre com o intuito de ajudar quem o lêr a entender melhor o que é passar por isto, seja para proveito próprio do leitor ou por interesses motivados por um "tocar" do destino em alguém próximo...
Obrigado pela FORÇA. Retribuo o beijo!

sideny disse...

Olá

Claro que nâo me está a aborrecer com o seu relato.

Acha que ha 9 anos de doença ia me aborrecer a ler como esta a ser o seu percursso.

Já fiz isso que esta a fazer e acredite que me ensinou a lidar com ela (a doença) de maneira diferente.

Ajuda bastante as reunioês , mas vêem coisas que nos deixam as vezes a pensar, além de pessoas em situaçôes piores que as nossas.

Mas força
abraço