sábado, 19 de setembro de 2009

Elipse Temporal



Ao ler as entradas anteriores, dei pela falta de um capítulo que me sinto na responsabilidade de partilhar.
Seguramente se lembrem do "F", um companheiro de penúria que estava imerso numa situação de exclusão social e familiar, para além de outras problemáticas pessoais.
Pois bem, desde aquela noite em que lhe dei guarida em minha casa, não pude deixar de pensar no que aquele homem estaria a passar. Ficou sempre latente na minha cabeça, como uma marca de fogo, o sofrimento de quem se vê tão desamparado e ainda por cima lhe diagnosticam SIDA.
Nas reuniões seguintes do grupo de auto-ajuda, falei várias vezes com ele e interessei-me pelo progresso da sua situação. Foi-me dizendo que era demasiado difícil encontrar um trabalho digno sem ter sequer onde descansar de noite, nem onde poder fazer a higiene diária, para não falar de uma alimentação adequada.
À medida que o inverno começava a fazer-se sentir, as vezes que me perguntava a mim mesmo o que poderia fazer para o ajudar ao longo do dia, iam em aumento.
O colectivo onde nos reuníamos contava com aconselhamento, mas daí não passava. Aí tinham-no remetido a um gabinete de atenção estatal que contava com assistente social, que o informou de programas de ajuda para casos como o dele, e como se deveriam levar a cabo os trâmites necessários, mas nada mais.
Acabei por fim por entender o que o impedia de recorrer a essas ajudas. Um belo dia, estava eu confortavelmente em casa, e deu-me por indagar a título pessoal.
Comecei a fazer chamadas para várias entidades para averiguar que programas existiam e como poderia ele aceder a estes. Puz-me em contacto com várias ONG's e ao fim de umas horas tinha conseguido colocá-lo em lista de espera em duas casas de acolhimento para seropositivos, uma da Cruz Vermelha, e outra de uma associação de beneficiencia, mas que não davam garantias de o receberem em tempo útil. Não contente com isso, consegui chegar à fala com a assistente social que seguia o caso dele e fiquei a saber que uma das ajudas estava já concedida. Consistia em encontrar uma pensão que estivesse disposta a alojá-lo durante um período de três meses, e a receber o pagamento directamente através da Cáritas. O dinheiro que estes dispunham não era suficiente para pagar um período tão longo em nenhum estabelecimento deste tipo numa cidade como Madrid, mas o principal obstáculo não era esse.
Nessa mesma tarde, saí de casa à procura do "F". Quando o encontrei, disse-lhe directamente: -"Diz-me lá em que estado está a história da ajuda que te dão e como funciona tudo isso."
Fiquei a saber, que o que o impedia de concretizar essa ajuda era o simples facto de não se sentir em condições de ir bater à porta de várias pensões, e que lhe fechassem a porta na cara. Era um problema de dignidade humana. Afinal, com tudo o que lhe estava a acontecer, e ainda por cima mais esta...
Então disse-lhe: -" Vem daí e vamos fazer uma lista de pensões da zona. Depois disso vamos os dois lá falar com os responsáveis e se tivermos que levar com a porta na cara, não te preocupes, que será na minha cara que estas se fechem, e não na tua".
E assim foi. Depois de calcorrear o centro de Madrid durante umas quantas horas, e de ter levado com várias portas na cara, lá conseguimos encontrar uma, na qual já tinham alojado outras pessoas através da Cáritas, e que não punham nenhum problema em recebê-lo.
Tratei de negociar o preço com o dono para que a diferença entre o que pagava a Cáritas e o que cobrava a pensão fosse a menor possível. Mas era necessário que a Assistente Social fosse lá falar com os donos para formalizar o processo, e entretanto já não eram horas de que esta estivesse a trabalhar. Assim sendo, combinamos com o Sr. que ela iria lá no dia seguinte, e entretanto perguntei se tinha algum quarto livre para essa mesma noite. Ter, tinha, mas não era um quarto individual, já que este só ficaria livre no dia seguinte, e assim, puxei de carteira e agarrei as ultimas notas que tinha. Decidi que o "F" não ficaria na rua mais uma noite, e paguei do meu bolso o quarto para esse dia.
Semanas mais tarde, quando o voltei a ver na reunião do grupo, fiquei satisfeito com o resultado. Tinha outra cara. Era outro homem. Tinha recuperado o brilho no olhar e não tinha mais do que palavras de agradecimento para comigo. Começara por fim a recolher os seus bens pessoais que caritativamente tinham sido guardados por várias pessoas em lojas e oficinas da zona, e podia fazer uma vida mais normal.
Não sei se finalmente acabou por conseguir emprego nesses três meses, mas pelo menos sei que durante esse tempo não dormiu à intempérie nem à mercê do frio inverno de Madrid.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pastilhas, Comprimidos e outras viagens II

No dia seguinte acordei cedo. Era dia de trabalho e lá tinha eu que cumprir com as minhas obrigações... Sentia como se em vez da cabeça, tivesse uma enorme abóbora colocada em cima do pescoço, e como se tivesse estado toda a noite a beber um qualquer Whisky barato com a respectiva ressaca e a falta de equilibro subconsequente.

Não me lembro de ter tido um dia de trabalho mais comprido... Sentia-me realmente mal. Mas à medida que passavam as horas, ia-me sentindo um pouco melhor. Lembro-me distintamente de sentir as tonturas e os calores num incessante vai-vem ao longo de todo o dia, mas não dei parte fraca, e a "reganha dentes" lá aguentei estoicamente toda a jornada de trabalho.

Estes efeitos secundários acompanharam-me durante vários dias, creio até que semanas, sempre em decrescendo. Actualmente ainda me visitam de vez em quando, mas vou aprendendo artimanhas para evitar tão desagradáveis visitas. Por exemplo, sei que se tomar a medicação com o estômago cheio é mais provável que sinta estes efeitos, por isso, sempre que posso janto mais cedo e assim evito sentir-me mal após tomar a medicação.

Outra coisa são os sonhos... Esses não há como evitá-los. Desde sempre tive uma relação especial com o mundo dos sonhos. Lembro-me de sonhar de criança com coisas que, mais dia menos dia, acabavam por acontecer. Mais tarde, após conhecer a dor da perda de alguém próximo, lembro-me de em sonhos poder conversar com esses seres queridos. Normalmente ao acordar esquecia-me de partes ou por vezes da totalidade dos meus sonhos. Hoje isso não acontece. Mais do que sonhar, de tão vivos que os sinto, os meus sonhos são experiências. Umas vezes agradáveis, outras nem tanto, mas sempre experiências. Não se pode dizer que "de vida", mas experiências muitas vezes repletas de espiritualidade e sensações reais, de presenças e interacções com muita gente; conhecida ou não, que está viva ou não... É como se por fim me apercebesse que pertenço a uma rede de pessoas, ou será de almas, que podem trabalhar em conjunto por objectivos em comum... Para interferir ajudando espiritualmente muitos outros que necessitam essa ajuda. Em conversa com um grande amigo, seguidor da corrente Espírita, fiquei bastante elucidado a respeito destas experiências. Não peço que ninguém compreenda esta parte do meu relato, até porque se poderia perfeitamente dizer que alguém que toma um comprimido que logo de entrada se chama Atripla, está sujeito a divagar pelo "sem sentido", mas sinto que se aproxima a hora de aprofundar um pouco sobre estes assuntos e partilhar a minha visão pessoal sobre as questões da espiritualidade.

"Ao largo ainda arde a Barca da Fantasia, o meu sonho acaba tarde, deixa a Alma de vigia..."

Pastilhas, Comprimidos e outras viagens...

O facto é que acabei por me afastar um pouco do "F". Achei que já me bastava com os meus próprios problemas e decidi descansar dos problemas dos outros.
Por esta altura, coincidiu uma consulta de rotina, após a segunda análise de sangue para ver como andavam as minhas defesas.

Quando pela primeira vez me deram uns resultados com quantificações de todo tipo, procurei nos outros membros do grupo ajuda para os entender. Pelo que fiquei a saber, uma carga viral de 3184 cópias do vírus no sangue era um valor favorável, já que estas podem ir até 50 000; por outro lado, uma contagem de linfócitos CD4+ de só 317 é já bastante baixo, já que se recomenda medicação para valores abaixo dos 350, mas o médico lá me explicou que o que realmente importa é a tendência dos valores, mais do que estes num determinado momento. Isto fez-me ficar esperançado de que variariam de forma favorável, já que com certeza estes valores tão baixos se deveriam ao stress do diagnóstico, e que assim que a minha vida se normalizasse, eles também o fariam.

Nada mais longe da verdade... Lá levei eu mais uma decepçao!
Quando me deram os segundos resultados, lá vinha uma Carga Viral de 9 104, que continuava a ser baixa e portanto não augurava nada mau, mas lá estava também uma contagem de CD4+ de apenas 270. A realidade é que eu não me sentia nada doente, bem pelo contrário. Eu que sempre fôra um frasquinho de cheiro, que cada dois por três me punha doente, na realidade encontrava-me estupendamente. Mas bem... em tom mais ou menos solene e ao mesmo tempo mais ou menos tranquilizador, lá me disse o especialista que havia chegado a hora de iniciar a terapia anti-retroviral.
Mais uma vez, aqui tivemos peripécias para todos os gostos...
Havia pouco tempo, saíra para o mercado um medicamento constituído por três componentes, reunindo assim uma tripla terapia (ou Cocktail terapêutico como alguns preferem chamá-lo... a mim não me importaria nada que fosse apenas um Cocktail...) tudo isto num só comprimido. Excelentes notícias, já que apenas teria que tomar um comprimido por dia, ao deitar, reduzindo assim as possibilidades de me esquecer de alguma toma e portanto de reduzir a eficácia do tratamento ou de que o vírus desenvolvesse resistências à medicação. Até aqui tudo bem, mas confesso que fiquei algo "de pé atrás" quando me recomendou não ler a bula do medicamento, para não me predispor aos possíveis efeitos secundários!...
Obviamente que uma mente inquisitiva como a minha, não pôde resistir a semelhante tentação, e foi exactamente a primeira coisa que fiz quando cheguei a casa...
Li e reli com serenidade o prospecto. Na verdade, até havia motivos para ficar assustado, sobretudo se tivermos em linha de conta que consta da lista de possíveis efeitos secundários ao medicamento um fenómeno chamado Acidose Láctea que na maioria dos casos deriva em Morte... Ora, a morte como efeito secundário é um pouco forte, diria eu... mas como também estava disposto a cumprir com a medicação pelo maior tempo possível, decidi recusar-me a sofrer este efeito secundário... que me dessem outros, mas esse não até porque eu tinha que continuar a medicar-me a não podia fazê-lo morto!...
Assim, quando chegou a hora de nos deitarmos, o meu amor lá me tinha posto um copo de água na mesinha de cabeceira e o frasquinho de Atripla mesmo ao lado.
Como se fosse um cerimonial que começava e que se repetiria de maneira ritual ad eternum, levantei o copo e disse: "Cá vai disto!"
A chapola não era nada fácil de engolir... sobretudo tendo em conta que são 1045mg de pastilhao! Mas com boa vontade, passou.
O mais curioso de tudo foi que adormeci como um bebé, e lembro-me de pensar: "já está, isto não custou nada!"... Engano outra vez!
Passada uma hora mais ou menos, acordei como se estivesse nas fornalhas do Inferno!!! Sentia um calor horrível, e isto que estávamos em pleno mês de Dezembro, com temperaturas exteriores da ordem dos -3ºC.
Mas eu ardia! Sentia-me arder como se estivesse deitadinho numa pira e com umas tonturas tão fortes que era como se essa pira estivesse num barco à deriva no meio do mar tempestuoso.
Por momentos senti-me na "barca da fantasia", aquela que ainda arde ao largo, como dizia o Pedro Ayres de Magalhães, tão bem interpretado pelos Madredeus. E de tanto arder e sentir-me à deriva, acabei por espernear até acordar o meu amor. Levantou-se de um salto, e veio pôr-se ajoelhado do meu lado da cama. Dizia que ao toque, não me sentia quente, mas eu não aguentava mais... então, foi buscar um copo de água que eu bebi furiosamente. Trouxe uma bacia de água fria e uma toalha... pacientemente foi-me colocando a toalha molhada pela testa, pela nuca, pelo peito... Não sei quanto tempo esteve nisto, mas sei que só assim acabei por voltar a adormecer... sentindo-me cuidadosamente atendido por quem me ama... Jamais esquecerei este seu gesto. Mais uma grande prova de amor, daquelas que vêm exactamente quando mais delas precisamos...

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Auto-Ajuda II

A noite acabava sempre da mesma maneira. Depois de uma reunião em tons mais ou menos sóbrios, íamos um grupo de uns 8 ou 10 jantar ao restaurante do Sr. Manuel.

O Sr. Manuel, trasmontano de gema radicado em Madrid há mais de 20 anos, gerencía um restaurante antigo no centro do bairro da Chueca, junto com a sua esposa e filhas. Claro que ao entrar pela primeira vez, lá tive eu que dar com os olhinhos num galo de Barcelos que nos vigiava do cimo da prateleira mais alta, juntinho às garrafas de aguardente caseira e ao tecto. Foi quando comentei com algum dos comensais a presença do familiar bicho, que me disseram que os donos do restaurante também eram portugueses e por cortesia, lá entablei conversa com eles em Português.
Aqui era onde verdadeiramente caíam as mascaras e cada um falava livremente de si e das suas experiências. Sem as reservas do grupo, e num tom mais distendido e cúmplice (cumplicidade por vezes compartida com o vinho do jantar) aqui era onde se viam as verdadeiras cores de cada um. Entre eles, havia de tudo, desde o solitário desesperadamente cansado dessa condição, o amigo picaresco que acabava sempre por confessar a sua predilecção por determinados jogos sexuais, o experimentado guia de museu, sempre com peripécias que contar tanto sobre os torpes visitantes do museu, como dos entremeios do mundo da cultura com o que sempre nos surpreendia, e uma soma de outros personagens, cada um com um apelativo próprio e especial.

Quando nestas tertúlias alguém se queria referir ao nosso denominador comum, em lugar de chamar-lhe VIH, chamava-lhe "Frederico". Assim, todos éramos "amigos do Frederico" e quem estivesse a ouvir, não tinha porque entender do que falávamos. Este recurso pseudonímico era de autoria do guia de museu, sobrevivente desde há quase 25 anos do "Fred", e em tempos em que a simples alusão ao termo VIH ou SIDA paralisavam meia cidade de cada vez que se proferiam. Era como uma palavra de código que herdamos dos tempos da resistência...

Entre estes personagens, lá estava o "F"de quem vos falei anteriormente. O "F" chegou ao grupo no mesmo dia que eu. Tinha 41 anos e vinha de um internamento hospitalar no qual lhe tinham informado da sua seropositividade. Chegou de rastos...até eu que nesse dia estava necessitado de ser alvo de consolo, acabei por tratar de o consolar a ele, e é que sempre há alguém em pior situação que nós.
Para além do problemático estado de saúde do "F", havia outros factores agravantes. Encontrava-se desempregado e sem qualquer subsídio, e para cúmulo, os "amigos" com quem compartia apartamento, atiraram com ele para a rua quando ele deixou de poder pagar o aluguer do quarto. E andava esta criatura a dormir nas caixas multibanco ou de vez em quando numa sauna em que o porteiro era seu amigo e o deixava entrar sem pagar. Ora tudo isto em cima de um tipo só e tudo ao mesmo tempo... era de bradar aos céus!
Nos nossos jantares lá o levávamos connosco e entre todos repartíamos o preço do menu dele; sempre era uma ajuda. Mas todos éramos conscientes de que não era solução para nada... Eu, talvez por ser tão novato no assunto como ele, era alvo dos seus desabafos, e acabava por regressar a casa ainda mais carregado.
Fiquei a saber que era um ex-sub-oficial militar de carreira, expulso da Marinha quando um tenente também homossexual o descobriu num lugar de ambiente num dos portos por onde passavam. Dupla moral de alguns... que são duplamente injustos. Depois disso, chegado a Madrid, envolveu-se na vida politica activa, até se dar de caras com a hipocrisia dos políticos e passar de um bando de direitas para nada menos que o partido comunista que acabou por ser o único que não o excluiu nem julgou por ser quem era...
Enfim, um personagem desses que uma vez que te conta o seu percurso de vida, e as suas origens, só não choram as pedras da rua... filho de uma prostituta, nunca conheceu o pai, e viveu na miséria grande parte da sua vida. Uma infância a dormir sobressaltado pelo entrar e sair da mãe acompanhada pelos "amigos" e abusado sexualmente por um deles numa ausência da mãe, por vezes o difícil é entender como alguém pode manter a cordura e a sanidade mental depois de um percurso destes...
Por isso, um dia, talvez a minha terceira ou quarta visita ao grupo, enquanto acabou a reunião, perguntei-lhe se tinha onde jantar e dormir nessa noite. Respondeu-me que não, e decidi levá-lo comigo para casa. O meu jantar era modesto, mas podia oferecer-lhe uma cama por uma noite, uma refeição quente, um duche e alguma roupa limpa. Ele aceitou e lá viemos para minha casa.
Na manha seguinte lá o levei de volta para o centro e despreocupei-me. Na seguinte reunião acabei por comentar entre dentes a um dos companheiros com quem tinha algo mais de confiança o ocorrido e perguntou-me se tinha corrido bem a coisa... fiquei preocupado. Obviamente interroguei o porquê da pergunta, ao que me respondeu que o "F", apesar da miséria em que vivia e de tudo o que lhe estava a acontecer, não deixara antigas dependências substanciosas... repassei mentalmente tudo o que tinha em casa antes e depois da sua passagem por lá, e não dei por falta de nada... Lembro-me de pensar: seria demasiado, "morder a mão que te dá de comer" mas nestas situações nunca se sabe...