sábado, 28 de fevereiro de 2009

O início... (Parte II)



Foi mais ou menos por essa altura que me senti necessidade de falar com alguém sobre o assunto. Saquei de telemóvel e tentei pôr-me em contacto com o meu "irmãozinho" (amigo fiel que apesar de estarmos longe continuamos a ser tão próximos como sempre).
Mas não houve sorte. Não pude localizá-lo.
Só duas horas mais tarde, depois de ter empurrado algo de comida pela goela abaixo sem nenhuma vontade, com cara de Quarta-feira de Cinzas, e de ter saído para a rua, com destino ao trabalho, voltei a tentar contactá-lo e desta vez sim, pude por fim falar.
Bem... falar não foi exactamente fácil. Ao ouvir essa voz familiar só pude sentar-me de novo num banco e soluçar... Do outro lado ouvi-o mudar de tom de voz várias vezes. De surpresa pela chamada a horas pouco habituais, passando por preocupação, e chegando mesmo a um pouco de desespero com alguma lágrima à mistura por não saber o que se passava e só me ouvir chorar...
Por fim, reuni algo de fôlego e disse:
-"Tenho HIV"
Nesse momento, notei-lhe uma nova mudança no tom de voz.
Procurou acalmar-me e convenceu-me a desistir da ideia de ir trabalhar nessa tarde. Disse-me para dar uma desculpa, mas que de nenhuma maneira fosse trabalhar. E que procurasse não estar sozinho. Lembrou-me que tenho mais amigos, algum mais próximo geograficamente e que procurasse alguém de confiança.
Assim fiz.
Vagueei uma hora por entre a gente num centro comercial. Tudo me provocava uma avalanche de sensações. Sentia uma revolta imensa pelo facto de o mundo continuar como se nada se passasse... Como se atreviam os demais a continuar a divertir-se? Como se atreviam a sorrir? Sentia que os olhares das pessoas me despiam de toda a dignidade e me reprovavam a própria existência. Era como se todos soubessem o que me estava a acontecer...
Tive de fugir. Refugiei-me no exterior, atrás dos meus óculos de sol, e na ponta traseira de um cigarro que fumava furiosamente atrás do anterior.
Por fim, reuni coragem e liguei a uma amiga.
Deviam ser umas 14h30 mais ou menos... e enquanto me atendeu, deve ter percebido que algo se passava. Só lhe disse que precisava que nos víssemos, e disse-me que nesse preciso momento, deixava tudo o que estava a fazer e vinha ao meu encontro. Sem perguntar mais nada... Mais tarde confessou-me que quando atendeu o telefone sentiu um arrepio muito estranho e que por isso não fez perguntas. Sentiu que de verdade era necessário que viesse ter comigo.
Passados uns 15 minutos, já tinha chegado.
Não vinha sozinha, trazia o namorado pelo braço.
Cumprimentámonos e ao fim de poucos minutos já a catarata de lágrimas brotava de novo pelo meu rosto.
Sem saber o porquê das minhas lágrimas, ambos me abraçaram com força e me fizeram sentir acompanhado.
Foi então que lhes disse.
Caminhámos durante umas horas por uns jardins próximos, muito calmos, serenos, sumamente bonitos, e ao longo da caminhada íamos desfiando, uma por uma, as ideias e as emoções que eu ia sentindo. Eles, rebatiam e faziam-me ver que não era o fim, que tinha que reunir forças para continuar com a minha vida e que podia fazer uma vida inteiramente normal.
(Que bom é ter amigas Psicólogas nestas alturas... Sabes perfeitamente em que momento deixam de falar como amigas e o Chip de profissional entra em acção)
Acabei exausto.
Levaram-me para casa deles e sem dar por isso adormeci no sofá. A Montanha-Russa de emoções acabou por me derrotar.
Quando acordei, demonstraram-me uma vez mais que a amizade desinteressada existe.
Tinham estado os dois, no mais extremo cochicho, à procura na Internet de algum grupo de auto-ajuda sobre o HIV ao qual eu pudesse acudir.
As possibilidades eram variadas (sorte de quem vive numa cidade como Madrid), e depois de ter visto e analisado com eles cada uma delas, decidi-me. A próxima reunião era daí a 3 dias...

...Continua...

De regresso

Amigos, peço desculpa pela tardança, mas entre casório e acidente de viação à mistura, não pude aceder antes e continuar o meu relato. Por esse facto, as minhas mais sinceras desculpas.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Início

Lembro-me perfeitamente. Jamais poderei esquecer aquele dia. Ficou-me gravado na memória com letras de fogo aquela data: "14 de Agosto de 2008".
Era mais um dia de verão, de mais um verão em que não podia desfrutar de férias, nem de um muito merecido descanso. A situação laboral não mo permitia.
Tinha feito análises uns dias antes porque me tinha aparecido um gânglio inflamado e estava morto de medo de que pudesse ser algum tipo de carcinoma. Nessa manha fui ao consultório da minha médica de família para saber os resultados das ditas análises, o que se revelou uma perfeita perda de tempo já que me fez ir lá, mas ainda não os tinha.
Fui tratar de uns assuntos pendentes de trabalho. Passei a manha nisso, e tive uma excelente notícia. Por fim, depois de muitos meses de luta tinha conseguido algo que muito ansiava. Um objectivo cumprido! Estava feliz!
Voltei para casa e enquanto se ultimavam os preparativos para o almoço, dediquei uns minutos a ler os meus mails. Estava nesta entretida tarefa, quando de repente tocou o telefone.
A partir desse momento senti como se o tempo tivesse parado.
-"Estou? É o Sr. Zé Ninguém?"
-"Sim, sou. Faça o favor de dizer."
-"Fala a sua médica. Era para ver se podia vir ao consultório. Preciso falar consigo."
-"Vou já para aí. Não demoro nada"
Saí à pressa de casa, sem saber o que me esperava. Não me saía da cabeça a ideia do carcinoma.
Quando cheguei ao consultório, ela estava à minha espera, e tudo estava já deserto. Ninguém... como se não houvesse mais ninguém no mundo... Tudo me parecia sumamente estranho.
-"Entre"
-"Com sua licença. Queria falar comigo?"
-"Sente-se."
O tom era solene e o semblante quase mórbido. Houve um momento de silencio sepulcral que me provocou um arrepio gelado.
-"Já tenho os resultados das suas análises. Foram detectados anticorpos anti-HIV no seu sangue."
Não podia acreditar no que estava a ouvir. A minha cabeça começou a andar a uma velocidade alucinante, e o meu coração acompanhou o ritmo frenético.
Pela primeira vez na minha vida, fiquei sem reacção. Não podia ser... mas... isto não me podia estar a acontecer... a mim? Não pode ser!... Estas coisas só acontecem aos outros... a pessoas inconscientes que têm comportamentos de risco... e eu não os tenho! Sempre fui muito cauteloso com estes assuntos.
-"Tem a certeza? Não pode haver engano?"- era mais fácil a negação do que assumir tal facto. Que saída tão pouco nobre.
-"Estes testes são extremamente fiáveis. Não pense que é o fim... certamente lhe esperam uns dez anos de vida saudável pela frente"- Que saída mais infeliz. Só bastante mais tarde pude dissipar os fantasmas que esta afirmação me originaram na mente.
-"Dez anos? Mas eu só tenho trinta. Dentro de dez anos terei quarenta..."
O silencio que me dedicou deixou-me ainda mais desesperado.
-"Quer dizer que começa a corrida... começa a minha fuga da infecção ou da doença que um dia vai acabar comigo?"
-"Bem... não é bem assim... Hoje-em-dia as coisas já não são tão dramáticas. Existem muitas medicações que podem fazer com que viva uma vida perfeitamente normal..."
Nesse momento essas palavras eram perfeitamente impossíveis de assimilar. Normal??? Como podia algo voltar a ser normal desse momento em adiante?
-"Vou mandá-lo a uma consulta da especialidade no Hospital para que lhe façam mais testes, para ver em que estado se encontra. Tenho pena de não lhe poder ser de mais ajuda, mas hoje é o meu último dia de trabalho antes de ir de férias. Se quiser, quando regressar podemos ver-nos e conversamos um pouco mais sobre o assunto."
Não podia acreditar neste personagem... Lança-me uma bomba destas e pira-se de férias... Traidora!
Queria levantar-me e sair dali, mas fraquejavam-me as pernas. Estava bloqueado. Era como se tivesse um fardo de várias toneladas em cima...
Respirei fundo, e consegui por-me de pé. Ela repetiu:
-"Sinto muito não poder fazer mais nada..." - mas essas palavras não me serviam de consolo. Nesse momento, e num acto de desesperação, tentei apelar a algum fio de humanidade existente na pessoa que tinha à minha frente e disse-lhe:
-"Há uma coisa que pode fazer por mim."- Apanhei-a desprevenida... Estendi os braços na sua direcção e abracei-a... mas era como abraçar um bloco de gelo. Que pouco tacto tem esta gente. Que falta de humanidade. Que falta de compaixão, de sensibilidade humana e humanitária. E é isto uma profissional da saúde.
Como não me serviu de consolo, despedi-me educadamente e saí.
Os meus passos eram guiados por uma vontade que não era a minha... quando me encontrei fora do edifício, não me senti em condições de conduzir o carro, e decidi sentar-me um momento num banco de jardim a fumar um cigarro.
A minha mente dava voltas e voltas e era como se o meu mundo estivesse prestes a acabar. Lembro-me nesse momento de ter sentido raiva até do cantar dos pássaros que por ali esvoaçavam... Como se atrevem? E as crianças num parque das redondezas continuavam a brincar, felizes e a entoar gargalhadas que me faziam sentir uma revolta infinita.
Quando acabei o cigarro fui, mecânicamente sentar-me ao volante do carro em direcção a casa. Não sei em que pensava. Era como se fosse um autómato.

...Continua...

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A VIHda de um Zé Ninguém

A criação deste Blog surge após um período de reflexão. Desses períodos de reflexão que normalmente são precedidos de um acontecimento traumático que mudam o rumo de uma vida.
O meu caso não é diferente, mas antes de entrar nessa temática devo falar-vos um pouco sobre a minha pessoa:
Vivo há cerca de 4 anos em Espanha. Poder-se-ia dizer que sou um "Cérebro em Fuga", termo tão familiar nos meios de comunicação social em Portugal, porque vim com o meu canudo debaixo do braço quando me decidi deixar as minhas raízes e empreender esta jornada, esta nova etapa da minha vida. Poder-se-ia, mas não seria a verdade. Na realidade a minha fuga foi por AMOR.
Sim, por amor deixei tudo e mudei de país para compartir os meus dias com a pessoa que amo.
Aqui não me preocupo pelas aparências, pelos diz-que-disse tão característicos da sociedade semi-provinciana em que estava inserido, apesar de viver na segunda cidade portuguesa, o Porto. Cidade essa que por um lado me estrangulava e não me deixava ser quem eu queria, mas que por outro, e vista à distancia me acentua o lado nostálgico e melómano, e tantas saudades me deixa...
Não me arrependo de ter vindo. Prova disso é que me caso dentro de 3 dias. Coisa só possível pelo facto de viver neste país e não no meu.
Por outro lado, nunca tive medo ao trabalho e devo dizer que sou um dos últimos "Homem dos sete instrumentos" (espécie cada dia mais em vias de extinção) porque já trabalhei em coisas muito diversificadas e nunca me caíram os anéis. Claro está que na minha área específica de trabalho, estou melhor em Espanha do que poderia estar em Portugal, apesar de que a crise mundial que se vive por estes dias me esteja a afectar o bolso e as noites de sono...

Chegados a este ponto, estou certo de que algum leitor mais impaciente estará a pensar:
"Mas quando é que o tipo se decide a dizer afinal que coisa tão traumática lhe aconteceu???"
Conheço a impaciência... temos uma relação de íntima cumplicidade... afinal, convivemos há quase 31 anos.
Bem, o motivo que me levou a criar este blog não é outro que não o de compartir com quem tiver a amabilidade (e a paciência) de ler, os meus desabafos... os desabafos de uma pessoa que convive há meio ano com o VIH.
Que três letras tão tremendas, não são?
Tenho uma mente inquieta, quem me conhece sabe disso... e não penso usar este espaço somente como um pano de lágrimas e choramingar as minhas desgraças.
Apesar de me encontrar num isolamento quase completo acerca da actualidade portuguesa, tentarei criar um espaço aberto a temas que ocupem dita actualidade assim como temas menos efémeros, relacionados com a condição humana e com a vida quotidiana sob os mais diversos pontos de vista. Haverá tempo para tudo, mas sinto-me na obrigação de levar a cabo uma outra missão bem mais nobre do que essa.
Haverá leitores que seguramente conheçam alguém portador do mesmo vírus, e que certamente não sabe como lidar com a situação ou simplesmente não tem coragem para tocar no assunto.
Aí entro eu.
Espero poder aclarar qualquer dúvida sobre o tema, e ao mesmo tempo aprender algo da interaçao com os leitores.
Se puder ajudar a que a vida de outra pessoa que se encontre na mesma situação que eu seja um pouquinho menos desagradável, certamente terei o prazer a satisfação de cumprir com um dever auto-imposto.
Espero encorajar com estas linhas a participação de quem por aqui passar.
Um abraço e até breve,
Zé Ninguém